Numa sociedade onde a imagem é sobrevalorizada, há que apresentar um corpo esbelto e atrativo. Mas a dieta pode levar a graves distúrbios alimentares na adolescência. Saiba a que estar atento.
(Este artigo foi publicado na revista Pais&Filhos, nº 307, Agosto de 2016, pag. 52-55, atualizado no nosso site)
O apelo é vinculado pela comunicação social, em particular por determinadas “revistas de sociedade”, onde figuram as “estrelas da moda”, com planos dietéticos, exercícios físicos e outras receitas para conseguir os tão desejados corpos esbeltos. Mas se há adolescentes que, uma vez alcançado determinado peso ideal, se consideram satisfeitas e cessam os seus comportamentos dietéticos, outras, pelo contrário, nunca alcançam a satisfação total e continuam numa luta interminável por um peso sem limites mínimos, iniciando a “viagem” para o “mundo” dos distúrbios alimentares.
Os distúrbios alimentares na adolescência são problemas do foro psicológico que se caracterizam pela obsessão por um autocontrolo na ingestão de alimentos e peso corporal, tendo como principais subtipos a anorexia, bulimia e compulsão alimentar. Ao contrário do que possa pensar, os distúrbios alimentares na adolescência não estão apenas relacionados com a alimentação, coexistindo geralmente com outras doenças como a depressão ou a ansiedade. O que está por detrás deste mecanismo e como poderá atuar como pai ou mãe para evitar que essa situação ocorra com a sua filha?
Da primeira dieta aos distúrbios alimentares na adolescência
Quando a adolescente se encontra na fase de criação da sua própria identidade, valoriza em excesso a mensagem de como obter uma imagem corporal esbelta. Dai decidir iniciar a primeira dieta, dado o seu desejo em emagrecer, pois pensa que assim estará a conseguir maior reconhecimento dos outros, reforçado pelo fato de obter apreço dos seus amigos e próprios familiares sempre que consegue emagrecer.
Só que mais tarde, a par da redução de calorias, a jovem intensifica o exercício físico, bem como reduz ao mínimo os períodos de repousos e o sono noturno. E daqui, desta total atenção na imagem e na alimentação, sempre que este autocontrolo é mantido, a adolescente obtém a satisfação e reconhecimento pessoal interno, fazendo perpetuar estes hábitos. Esta fase corresponde à anorexia, como subtipo dos distúrbios alimentares na adolescência.
Até que chega o dia em que a jovem anorética perde o controlo e quebra o duríssimo regime, comendo muito mais do que aquilo que se permite a si própria. Este fenómeno é muitas vezes o princípio de uma série de crises de fome incontrolável: a anorexia transforma-se em bulimia. Assim, a jovem ao tomar consciência da quebra do autocontrolo, induz o vómito ou recorre a laxantes para, assim, voltar a sentir a suposta limpeza e esvaziamento do corpo.
Este é o cenário típico do desenvolvimento de distúrbios alimentares na adolescência, em que uma jovem ao iniciar a primeira dieta acaba por vir a desenvolver anorexia e/ou bulimia.
Os 9 mitos sobre os distúrbios alimentares na adolescência
É oportuno desmistificar alguns dos chamados “mitos” que se encontram, em maior ou menor grau, enraizados na nossa sociedade. Cynthia Bulik, reconhecida especialista internacional em distúrbios alimentares e professora na Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos, apresentou recentemente os “nove mitos dos distúrbios alimentares”, na conferência do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos:
#1 Consegue-se perceber apenas olhando para a pessoa
Realidade: os distúrbios alimentares na adolescência não se referem apenas ao problema da anorexia ou bulimia, em que a pessoa tem um peso abaixo do normal, ou ao transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP), em que a pessoa apresenta um excesso de peso. De fato, aqui englobam-se vários subtipos, em que a pessoa pode ter um peso normal, como pode ser o caso da anorexia nervosa atípica. Por isso, este tipo de perturbação ocorre ao longo de todo o espetro de índice de massa corporal.
#2 É um problema de origem familiar
Realidade: as famílias têm sofrido muito devido a este mito, em particular as mães, pois têm sido apontadas como as principais culpadas da anorexia das suas filhas, o que não corresponde à realidade. Pelo contrário, as famílias são o melhor alicerce sem o qual o tratamento dos distúrbios alimentares na adolescência é (quase) impossível.
#3 As mães são as culpadas
Realidade: as mães são as que mais têm sofrido, dai esta referência dedicada especialmente às mães. Elas não são a causa da perturbação, bem pelo contrário, são as melhores aliadas que podemos ter na recuperação.
#4 Distúrbios alimentares são uma opção
Realidade: não são uma opção da adolescente. Talvez seja o mito que mais afeta os pacientes com distúrbios alimentares na adolescência. Vemos isso frequentemente quando a adolescente com distúrbios alimentares recorre aos serviços médicos, em que os profissionais de saúde, de alguma forma, vêm este tipo de problemas como sendo algo pouco grave, ou até uma opção da pessoa, pelo que dão pouca prioridade a estas situações.
Em muitos casos, também é uma situação mal compreendida pelas famílias. Talvez isso se deva ao fato de hoje em dia ser uma constante o culto da imagem, bastante evidenciado nas revistas dos famosos, aparecendo, assim, o estereotipo da pessoa que quer seguir esses modelos, em que impera o culto da magreza. Esta associação com o problema da anorexia acaba por se tornar inevitável, precipitando-se a conclusão de que se trata de uma opção da adolescente.
É um fato que muitos distúrbios alimentares na adolescência começam com um “vou iniciar a primeira dieta”. Só que alguns minutos depois da adolescente começar essa primeira dieta, há fatores biológicos que são desencadeados e que propiciam o aparecimento da anorexia. A partir dai, ela passa a não ter qualquer controlo sobre este processo. Os distúrbios alimentares acabam por ser uma consequência, e não uma opção da pessoa.
#5 Distúrbios alimentares afetam jovens de classe média-alta
Realidade: é uma perturbação que afeta todas as idades, homens e mulheres, de diferentes raças e classes sociais. Pensou-se durante muito tempo que este era um problema exclusivo das adolescentes, mas estudos realizados nos Estados Unidos e Reino Unido mostraram que, cada vez mais, mulheres de meia-idade sofrem deste tipo de perturbação. Esses mesmos estudos mostraram que a incidência desta doença é transversal às várias raças e etnias, incluindo população branca, afro-americana, latina e asiática, e afetando todas as classes sociais. Também não é um problema exclusivo das mulheres. O que se tem passado é que tem sido difícil captar a incidência dessa perturbação na população masculina, uma vez que os homens têm uma grande dificuldade em assumir problemas de falta de controlo e, consequentemente, não procuram ajuda.
#6 Distúrbios alimentares na adolescência não são problemas sérios
Realidade: são problemas bastante sérios. Observa-se, por exemplo, que as tentativas de suicídio estão muitas vezes associadas com vários subtipos de distúrbios alimentares. Por isso, é urgente tratar os distúrbios alimentares na adolescência.
#7 A culpa é da sociedade
Realidade: na origem desta doença entram várias variáveis, em particular a genética, o ambiente familiar e social. O mito de que a causadora desta doença é a sociedade, sobretudo os “media”, é bastante redutor. Hoje sabe-se que a genética cria uma certa propensão para a perturbação, mas é o ambiente que tem aqui o papel principal. Acontece que determinados fatores ambientais poderão dar início a uma determinada propensão genética que pode estar presente, comportando-se esses fatores ambientais como o “detonador” para o desenvolvimento da doença.
#8 A genética define o destino
Realidade: como referido anteriormente, não são os fatores genéticos, mas os ambientais, que têm o papel primordial nos distúrbios alimentares na adolescência, podendo contribuir positiva ou negativamente para a doença.
#9 São problemas sem cura
Realidade: os distúrbios alimentares são tratáveis, pelo que não são para toda a vida. Geralmente o tratamento passa pelo recurso a medicamentos e psicoterapia.
Alguns sinais a estar atento
Nos distúrbios alimentares na adolescência, como referido, os fatores ambientais desempenham um papel fundamental que podem aumentar o risco do aparecimento da doença. Dai que lhe apresente os fatores ou sinais a que deverá estar alerta no comportamento da sua filha:
- Prática de desportos com o intuito ou foco de perder peso. Em particular a adolescente anorética procura aumentar a prática de exercício físico, com a finalidade de queimar mais calorias, produzindo até certo ponto um equilíbrio negativo, isto é, são queimadas mais calorias do que aquelas que são ingeridas. Consequentemente, verifica-se uma diminuição de peso muito significativa.
- Dietas. É geralmente o primeiro passo no desenvolvimento de um distúrbio alimentar na adolescência. Temos que ser muito cuidadosos na prevenção da obesidade, mas o recurso a dietas deve ser vigiado. Neste ponto, deverá estar atento ao comportamento da sua filha durante as refeições, em particular se costuma levar a refeição para o quarto, pois poderá estar a esconder uma situação de restrição alimentar.
- Estar obcecada com a imagem. Poderá existir alguma situação de pressão, ou mesmo bullying – não necessariamente sobre a aparência física ou peso – que poderá estar a propiciar uma situação de risco. O diálogo com a sua filha é sempre o melhor recurso para detetar este tipo de situação. Igualmente, deverá estar atento a determinados comportamentos, como a utilização exagerada da balança, o palpar constantemente de certas áreas do corpo, ou ainda referências verbais frequentes sobre a sua suposta obesidade.
Testemunho de uma jovem com distúrbios alimentares
Para uma melhor compreensão do tipo de verbalização de uma adolescente com distúrbios alimentares, apresento-lhe algumas das reflexões de uma jovem paciente com anorexia e bulimia que tenho acompanhado no meu serviço de psicologia clínica:
“A minha família tentou encorajar-me, dizendo-me ‘estás bonita’. Os meus pais tentaram ajudar-me, mas eu não gostava do meu corpo e naquilo em que me tinha transformado”.
“Eu já não pensava na minha família, nas aulas, nas minha emoções. Não queria pensar em mais nada. Só pensava na comida que estava à minha frente. Desligava o telemóvel, porque um telefonema era como um despertar para a realidade”.
“Eu sabia que o meu comportamento estava errado, mas não sabia como parar”.
Outros sinais a ter em conta
Para além dos sinais de alerta apresentados é frequente outros sinais e que dependem do subtipo de distúrbio alimentar. No caso da anorexia, para além da magreza e diminuição da massa corporal, verifica-se igualmente uma descida da tensão arterial que induz tonturas e sensação de fraqueza, obstipação e prisão de ventre, hipotermia, pele seca, escamosa e sem elasticidade, unhas quebradiças e queda de cabelo, edemas, fraqueza muscular e dificuldades de concentração. Poderá ainda manifesta amenorreia (ausência de menstruação).
Já as adolescentes com bulimia podem ter um peso baixo, normal ou excessivo. Apresentam acessos de fome descontrolada, vomitando de seguida, várias vezes por dia. Tal provoca, além dos sintomas supra enumerados da anorexia, ferimentos na garganta, problemas dentários (queda dos dentes, erosão do esmalte e cáries) e inflamações das glândulas salivares.
Por último, deverá saber que um distúrbio alimentar poderá passar despercebido durante muito tempo, e geralmente quando são apresentadas evidências, quem sofre da doença nega que tem problemas alimentares.
Um ambiente favorável e positivo diminui o risco
É também importante perceber que os fatores ambientais podem contribuir positivamente na prevenção dos distúrbios alimentares na adolescência. É sobretudo nesta área que poderá atuar e ajudar a sua filha, tendo em vista a diminuição e prevenção do risco dela poder vir a desenvolver este tipo de doença. Apresento-lhe de seguida alguns pontos em que poderá atuar positivamente:
- Modelo de alimentação saudável. Assegure-se que efetivamente a sua família tem uma alimentação saudável e que constitui um modelo para os seus filhos.
- Diferenciar autoestima e estima-corporal. É frequente as pessoas elogiarem a aparência das crianças. Se isso acontece com a sua filha, assegure-se que, imediatamente a seguir a esse elogio, diz algo do género: “Sim, ela é também muito boa a pintar”, ou “ela é muito boa a matemática”. Isso irá ajudar a sua filha a dissociar o elogio da aparência física.
- Envolvimento da família. A família tem que estar sempre presente, proporcionado um ambiente afetivo e relacional adequado.
- Apoio dos amigos. É importante ter o envolvimento dos amigos que apoiem a sua filha por aquilo que ela é, e não baseado na sua aparência física.
- Ter consciência que não consegue controlar tudo. Apesar de toda a ajuda que possa proporcionar à sua filha, ela ainda assim poderá desenvolver um distúrbio alimentar.
A realidade é complexa e nem tudo é controlável
A verdade pode ser perturbadora, mas de fato poderá não ser possível evitar o desenvolvimento desta doença. A realidade é muito complexa e há algumas variáveis que não são controláveis, nomeadamente a herança genética. Essa, por enquanto, não está ao nosso alcance controlar, pelo que devemos enveredar pela prevenção da doença atuando nos fatores ambientais, sobre os quais podemos ter algum grau de controlo.
Assim, é útil introduzir-lhe neste momento o conceito dos quatro quadrantes de riscos e fatores protetivos, que de certo modo sintetizam muito do que já descrevi neste artigo, e que ajudam na compreensão mais ampla dos fatores que estão subjacentes ao desenvolvimento dos distúrbios alimentares na adolescência.
- 1º quadrante: fatores de risco genéticos. Aqui englobam-se os genes herdados dos pais e que podem desencadear o desenvolvimento da doença.
- 2º quadrante: fatores genéticos protetivos. Ao contrário do quadrante anterior, são os genes herdados que diminuem o risco, como por exemplo, ter uma propensão para ser magra, o que poderá evitar a primeira dieta.
- 3º quadrante: fatores de risco ambiental. Inclui-se aqui, por exemplo, a pressão social para alcançar uma determinada imagem, o que pode conduzir à primeira dieta. Deverá estar atento aos sinais que falámos anteriormente.
- 4º quadrante: fatores ambientais protetivos. É o ambiente favorável e positivo que falamos no ponto anterior.
É importante salientar que os nossos filhos herdam um leque de ambos tipos de genes, fatores de risco e protetivos, bem como estão pressionados por fatores ambientais de risco e protetivos. Igualmente, é relevante mencionar que interessa não só o equilíbrio entre estes quatro quadrantes, como também temos que considerar a escala temporal. Por exemplo, alguns fatores de risco ambiental são muito críticos durante a adolescência. E ainda, como já referir, pouco (ou nada) podemos fazer em relação à herança genética. Deste modo, deverá focar-se no aspeto ambiental. Poderá tentar minimizar os riscos ambientais e aumentar a influência dos fatores ambientais protetivos.
Tratamento dos distúrbios alimentares na adolescência
Os distúrbios alimentares na adolescência são tratáveis, mas os vários subtipos requerem um tratamento diferenciado. Nalguns subtipos de distúrbios alimentares, como a bulimia ou transtorno da compulsão alimentar periódica, o recurso a medicamentos funciona bem no curto prazo. Mas já a anorexia requer um tratamento inicial de reabilitação e recuperação do peso, pois esse primeiro passo é absolutamente essencial para colocar novamente o cérebro a funcionar. Contudo, para um tratamento de longo prazo, a psicoterapia tem sido escolhida como a ferramenta de eleição no tratamento dos distúrbios alimentares, dado que é hoje a técnica terapêutica que melhores resultados tem apresentado. Em particular no tratamento com recurso à psicoterapia, torna-se imperiosos trabalhar três pontos fundamentais:
- Identificar a função desempenhada pelo distúrbio alimentar (ou seja, o que faz perpetuar os atos associados aos distúrbios alimentares)
- Perceber a história da evolução da doença na procura da essência do problema
- Definir um plano psicoterapêutico tendo em vista ajudar a jovem a contruir uma formar mais realística de encarar a vida
Assim, a primeira fase de qualquer processo psicoterapêutico é o reconhecimento do problema, por mais doloroso que seja admiti-lo. Se os distúrbios alimentares se associam a um vazio afetivo, há que procurar as causas e encontrar soluções saudáveis para impedir um bloqueio de desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social numa fase de transição, tão crucial na vida da adolescente.
Como recomendação geral, no tratamento de distúrbios alimentares, deverá procurar a ajuda conjunta de profissionais na área da psiquiatria e psicologia, os quais o poderão aconselhar sobre a melhor abordagem terapêutica para o subtipo de distúrbio alimentar em causa.
Elisabete Condesso / Psicóloga e Psicoterapeuta
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